A barca dos insensatos
Mauro Santayana
Volta o presidente do Supremo Tribunal Federal a sair de seus limites constitucionais para atacar o Poder Executivo, no caso do MST. O apoio recebido pelo juiz demonstra a alienação de grande parcela da sociedade brasileira, que parece viver em outra galáxia. O mundo se mobiliza para restaurar o contrato entre a espécie e a natureza, o que significa reexaminar as estruturas sociais e o convívio político. Nos Estados Unidos, o presidente Obama propõe cobrar mais dos ricos para favorecer os pobres. No Brasil, o sistema continua baseado na injustiça.
Os interesses pessoais perturbam a inteligência, quando não a expulsam da mente. Quem examinar a História brasileira das últimas décadas verá que, ao contrário do que dizem, o MST serviu para amortecer a grande crise social contemporânea, ao transformar a revolta latente em esperança. Os que brandem as foices e enxadas estariam com outros instrumentos nas mãos se parcela da Igreja, com o senso histórico da conciliação, não os houvesse encaminhado para a ocupação de terras ociosas ou de titularidade duvidosa.
A propriedade da terra, por mais reduzida que seja, é mais do que promessa de subsistência. Ela é a necessária identidade com o mundo, com o cosmos. Quando o homem deixou de ser nômade, apartou-se dos azares da vida em bandos para situar-se junto a uma fonte e sob uma estrela, a fim de cultivar o solo e sobre ele construir sua posteridade. Ao edificar as cidades, os homens nelas mantiveram o sentimento telúrico de ligação com o universo. Quando a miséria torna intolerável a vida urbana, a memória ancestral lhes acena com o retorno ao campo. Eles não podem ser privados desse forte sentimento de continuidade da vida, que os distingue dos outros seres. O sonho de segurança e de felicidade de cada pai de família, de acordo com o católico radical Chesterton, pode ser resumido na propriedade de three acres and a cow. Ao traduzir a frase para o leitor brasileiro, Gustavo Corção teve o cuidado de aumentar a área, transformando os três acres de Chesterton (1,21 hectare) em três alqueires. O alqueire, em certas regiões brasileiras, corresponde a 4,84 hectares. Para as nossas dimensões, 14,52 hectares é ainda insuficiente minifúndio.
A chegada do capitalismo ao campo agravou a natureza dos conflitos rurais e transformou o pequeno lavrador em operário que maneja máquinas e não sente, nas mãos, a morna suavidade das sementes. No passado, pistoleiros, a soldo dos latifundiários, queimavam ranchos, espancavam os posseiros e chacinavam famílias humildes. Hoje atrevem-se a assassinar sacerdotes e líderes dos trabalhadores, não se contendo nem mesmo diante de religiosas estrangeiras, como Dorothy Stang. Com mais competência agem os grandes empresários do agronegócio. Muitos deles conhecem suas terras pelos mapas e as escrituras e rápidos sobrevoos. Não sujam as mãos com a terra, não conhecem seu gado, como não conhecem os pistoleiros que contratam de empresas terceirizadas para "desinfestar" de posseiros as áreas "adquiridas" mediante fraudes.
Os defensores do latifúndio argumentam com a violência dos "invasores" de terras ociosas, mas não se preocupam com os mortos do outro lado. A diferença é brutal. São milhares de trabalhadores de um lado, e meia dúzia de jagunços do outro. O ministro Gilmar Mendes talvez estivesse lendo Carl Schmitt no dia em que a Polícia Militar do Pará cometeu o massacre de Eldorado dos Carajás.
Os porta-vozes do MST estão corretos em sua advertência, embora lhes fosse melhor evitar o tom ameaçador. Se o Estado não intervier com decisão nas atividades econômicas, o crescente desemprego irá jogar nas ruas e nas estradas exércitos cada vez mais numerosos e desesperados de trabalhadores. Em lugar de empregar a justiça de classe (a dos ricos) e a violência policial contra os excluídos de seus empregos, de suas casas, de sua dignidade de chefes de família, o Estado terá, isso sim, que desapropriar mais terras ociosas e gastar o que puder para que eles possam ali acomodar suas esperanças. Do contrário, não só podemos esperar por uma jacquerie no campo – muito mais extensa do que a ocorrida na França do século 16, quando centenas de nobres foram empalados na frente de seus castelos – mas, também, pela explosão dos excluídos nas grandes cidades.
A classe média, tão afastada da realidade pela ficção do noticiário, deve pensar nisso.
Domingo, 01 de Março de 2009 - 00:00
Os interesses pessoais perturbam a inteligência, quando não a expulsam da mente. Quem examinar a História brasileira das últimas décadas verá que, ao contrário do que dizem, o MST serviu para amortecer a grande crise social contemporânea, ao transformar a revolta latente em esperança. Os que brandem as foices e enxadas estariam com outros instrumentos nas mãos se parcela da Igreja, com o senso histórico da conciliação, não os houvesse encaminhado para a ocupação de terras ociosas ou de titularidade duvidosa.
A propriedade da terra, por mais reduzida que seja, é mais do que promessa de subsistência. Ela é a necessária identidade com o mundo, com o cosmos. Quando o homem deixou de ser nômade, apartou-se dos azares da vida em bandos para situar-se junto a uma fonte e sob uma estrela, a fim de cultivar o solo e sobre ele construir sua posteridade. Ao edificar as cidades, os homens nelas mantiveram o sentimento telúrico de ligação com o universo. Quando a miséria torna intolerável a vida urbana, a memória ancestral lhes acena com o retorno ao campo. Eles não podem ser privados desse forte sentimento de continuidade da vida, que os distingue dos outros seres. O sonho de segurança e de felicidade de cada pai de família, de acordo com o católico radical Chesterton, pode ser resumido na propriedade de three acres and a cow. Ao traduzir a frase para o leitor brasileiro, Gustavo Corção teve o cuidado de aumentar a área, transformando os três acres de Chesterton (1,21 hectare) em três alqueires. O alqueire, em certas regiões brasileiras, corresponde a 4,84 hectares. Para as nossas dimensões, 14,52 hectares é ainda insuficiente minifúndio.
A chegada do capitalismo ao campo agravou a natureza dos conflitos rurais e transformou o pequeno lavrador em operário que maneja máquinas e não sente, nas mãos, a morna suavidade das sementes. No passado, pistoleiros, a soldo dos latifundiários, queimavam ranchos, espancavam os posseiros e chacinavam famílias humildes. Hoje atrevem-se a assassinar sacerdotes e líderes dos trabalhadores, não se contendo nem mesmo diante de religiosas estrangeiras, como Dorothy Stang. Com mais competência agem os grandes empresários do agronegócio. Muitos deles conhecem suas terras pelos mapas e as escrituras e rápidos sobrevoos. Não sujam as mãos com a terra, não conhecem seu gado, como não conhecem os pistoleiros que contratam de empresas terceirizadas para "desinfestar" de posseiros as áreas "adquiridas" mediante fraudes.
Os defensores do latifúndio argumentam com a violência dos "invasores" de terras ociosas, mas não se preocupam com os mortos do outro lado. A diferença é brutal. São milhares de trabalhadores de um lado, e meia dúzia de jagunços do outro. O ministro Gilmar Mendes talvez estivesse lendo Carl Schmitt no dia em que a Polícia Militar do Pará cometeu o massacre de Eldorado dos Carajás.
Os porta-vozes do MST estão corretos em sua advertência, embora lhes fosse melhor evitar o tom ameaçador. Se o Estado não intervier com decisão nas atividades econômicas, o crescente desemprego irá jogar nas ruas e nas estradas exércitos cada vez mais numerosos e desesperados de trabalhadores. Em lugar de empregar a justiça de classe (a dos ricos) e a violência policial contra os excluídos de seus empregos, de suas casas, de sua dignidade de chefes de família, o Estado terá, isso sim, que desapropriar mais terras ociosas e gastar o que puder para que eles possam ali acomodar suas esperanças. Do contrário, não só podemos esperar por uma jacquerie no campo – muito mais extensa do que a ocorrida na França do século 16, quando centenas de nobres foram empalados na frente de seus castelos – mas, também, pela explosão dos excluídos nas grandes cidades.
A classe média, tão afastada da realidade pela ficção do noticiário, deve pensar nisso.
Domingo, 01 de Março de 2009 - 00:00
5 comentários:
Gilmar Mendes, o defensor dos fracos e oprimidos do colarinho branco. Até que estava quieto, ultimamente.
Se era pra abrir a boca, que tal sugerir a compra, mediante ao valor declarado no imposto territorial rural (ITR), desse monte de terra improdutiva conquistada na base da grilagem pelos latifundiários?
Gilmarzino, Gilmarzinho, fica quietinho...
Gostei muito do texto do Santayana. Interessei-me pela Jacquerie e dei uma pesquisada. De fato, ocorreu em meados do século XIV. A principal fonte histórica, Jean Froissart, descreve assim um dos acontecimentos:
...mataram o cavaleiro, a dama e os filhos, grandes e pequenos, e incendiaram tudo. Logo foram a um castelo e ali ainda fizeram pior, pois prenderam o cavaleiro e o ataram a uma estaca muito fortemente, e muitos violaram a mulher e a filha diante do cavaleiro. Depois mataram a mulher, que estava grávida, a sua filha e todos os filhos, e o marido, depois de torturá-lo, queimaram-no e destruíram o castelo. (FROISSART, op. cit.: 180)
ou como aqui:
Pois, entre outras vilanias, mataram um cavaleiro e o cravaram em um assador para assá-lo no fogo diante de sua dama e de seus filhos. Depois que dez ou doze forçaram e violaram a dama, quiseram fazer ela comê-lo à força e logo fizeram-na morrer de má morte.
Bem, creio que esqueci-me da reação. O Duque mandou um de seus vassalos para a repressão:
Raoul exaltou-se de tal modo / Que não fez julgamentos / Pô-los todos tristes e doloridos / A muitos arrancar os dentes / E a outros mandou empalar / Arrancar os olhos, cortar os pulsos / A todos mandou assar os jarretes / Mesmo que com isso morressem / Outros foram queimados vivos / Ou metidos em chumbo a ferver / Assim mandou tratar a todos / Ficaram com aspecto horroroso / Não foram depois disso vistos em parte nenhuma / Onde não fossem bem reconhecidos / A comuna ficou reduzida a nada / E os vilãos portaram-se bem / Retiraram-se e demitiram-se / Daquilo que tinham começado
Salve Salve Glória
Acho que não é o Brasil todo não, aqui em Sorocaba no jornal Cruzeiro do Sul, saiu um Editorial só elogiando, dizendo que o Brasil precisa de homens como ele para que o país melhore. Mandei um email questionando, mas até agora não foi postado.
Saudações
Avelino
Slave salve
Acho muito nobre tb dar tiro na cara de jagunço
aonde ja se viu interferir em causa tão nobre como roubar a terra alheia.
merece tiro na cara mesmo....alias...defensores deste tipo de atitude esta cheio no governo.
Só faltou mesmo o Presidente do Supremo apoiar tiro na cara de jagunço deferido por frágeis membros de um movimento social tenro e bondoso como o MST.
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