22 junho 2010

Sem crescimento equilibrado é difícil um país ter credibilidade, diz Marco Aurélio Garcia

Assessor de Lula para assuntos internacionais faz balanço de oito anos de governo petista. Analisando o papel do Brasil no cenário mundial, Garcia tacha sanções ao Irã como "incorretas e inúteis".

Em outubro próximo, será eleito o sucessor do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Após oito anos de gestão, Lula entrega o governo como um dos líderes mais influentes do mundo e após converter o país em potência em ascensão. O assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, falou à Deutsche Welle.

Deutsche Welle: Em que situação Lula deixa o país?

Marco Aurélio Garcia: Em uma boa situação. Temos uma taxa de crescimento que poderá superar os 8% este ano, com uma situação social muito positiva. Houve um aumento do salário mínimo e um acréscimo significativo de 14 milhões de novos empregos nos últimos oito anos. A situação macroeconômica está bastante bem.

Lula deixa contas equilibradas e uma redução sensível da vulnerabilidade externa do país, com reservas de quase 260 bilhões de dólares. É óbvio que há questões sociais a serem resolvidas. Não estamos numa situação autocomplacente, porém quem chegar à presidência do país encontrará uma situação mais fácil do que a que Lula encontrou ao começar seu governo.

No ano passado foram descobertas novas reservas de petróleo no país. Que posição o país ocupa em termos de reservas petrolíferas? Em que serão utilizados esses recursos?

É muito difícil de estimar, pois constantemente aparecem novas jazidas, mas acreditamos que o Brasil se situará entre os quatro principais produtores mundiais de petróleo. As últimas estimativas projetaram as reservas em cerca de 80 bilhões de barris, mas esta cifra já foi superada.

O mais importante é que o Brasil não se transforme num exportador de óleo bruto, mas que tenhamos a capacidade de agregar valor a essa produção, quer dizer, produzir gasolina, diesel e outros derivados. Vamos destinar uma parte significativa dos lucros petroleiros para criar um grande fundo para financiar políticas sociais, de desenvolvimento científico e tecnológico, educação e cultura.

O Brasil tem um gasto militar considerável. Qual é o perigo disso? Não seria melhor investir esses recursos em educação?

Isso não procede. O Brasil é um dos países com menor gasto militar. Na América Latina, não há comparação com o Chile e o Peru. Depois do regime militar, que talvez estigmatizou as Forças Armadas por haverem participado do golpe de Estado, houve uma redução brutal do gasto militar no país. Isso provocou a perda de capacidade das Forças Armadas, que ficaram com armamento antiquado, soldos baixíssimos e, sobretudo, com falta de perspectivas.

Eu sempre disse que no Brasil as Forças Armadas tinham três inimigos, que eram o comunismo internacional, a Argentina e o inimigo interno. O comunismo internacional já não existe; a Argentina se transformou em nosso principal aliado; e o inimigo interno está no governo. Havia a necessidade de repensar totalmente a estratégia de defesa do país. Foi o que fizemos no ano passado.

Eliminamos essa ideia napoleônica dos quartéis nas cidades. O que queremos são Forças Armadas que protejam as fronteiras, a Amazônia e os litorais. Tudo isto no quadro de uma estratégia dissuasória. Temos 8 mil quilômetros de litoral, o que é muita coisa, pressupõe equipamentos modernos, sofisticados, e grande capacidade de mobilidade.

Em que consiste o êxito econômico do Brasil, que nenhum outro país latino-americano consegue imitar? No desenvolvimento de uma indústria nacional antes de se converter em potência petrolífera?

Felizmente não fomos uma potência do petróleo, porque se tivéssemos sido talvez isso teria consequências negativas para o país. Não para o nosso governo, mas talvez governos anteriores teriam feito o que outros países fizeram.

Como o México?

Não me refiro ao México, mas ao que outros países fizeram. Chávez, inclusive, tem uma visão muito crítica sobre o modelo de desenvolvimento que seu país levou a cabo como país petroleiro. O Brasil pôde desenvolver como o México, como a Argentina, uma indústria nacional importante. E preservou esta indústria e a desenvolveu inclusive durante o período militar. Porque os militares brasileiros não foram neoliberais, foram desenvolvimentistas.

Autoritários, mas desenvolvimentistas. Isso deu certa base industrial ao país, mas o problema foi o desequilíbrio. Durante a ditadura, crescemos. Durante vários anos tivemos uma taxa de crescimento de 10-12% ao ano. Entre os anos 1930 e 1980, a economia brasileira cresceu a uma média de 6%, o que é muito. No entanto, esse crescimento foi marcado por um desequilíbrio macroeconômico muito grande. O crescimento da dívida, períodos de picos de inflação e exclusão social. Não foi um crescimento com impacto na melhoria das condições de vida das pessoas.

Isso foi resolvido?

Conseguimos resolver em primeiro lugar o problema do desequilíbrio macroeconômico e da vulnerabilidade externa. O Brasil era um grande país devedor quando Lula assumiu o governo. Agora, é um país credor. Até à Grécia estamos emprestando dinheiro. Em segundo lugar, reiniciamos um período de crescimento econômico, e o fizemos com forte distribuição de renda e este foi um dos fatores de crescimento econômico.

Porque quando a crise chegou houve uma retração do mercado internacional. As exportações no ano seguinte à crise (2009) caíram em 25% a 30%. Nós compensamos isso em grande parte com o mercado interno. Para que haja um mercado interno, as pessoas têm que ter emprego, receber salários e, neste tempo, o salário mínimo no Brasil dobrou o seu valor.

O fato de um ex-líder sindical como Lula ter chegado à presidência do Brasil seria impensável na Europa. Mas também sua política externa, da qual o senhor tem sido o assessor, surpreende os europeus. Qual é a expectativa de Lula?

Uma expectativa centrada na defesa dos valores universais relativos à soberania nacional, aos direitos humanos, à solução de conflitos através da negociação, e numa ênfase muito grande na necessidade de uma ordem multilateral. Nós cremos que o Brasil pode ter uma voz no mundo, pois cremos ter resolvido algumas questões internas. Não todas: temos muito a fazer no tocante à inclusão social, por exemplo. Porém o fato de havermos alcançado um crescimento equilibrado macroeconômico e social nos fortaleceu muito. Pois caso contrário é muito difícil um país ter credibilidade.

O fato de o Conselho de Segurança da ONU ter imposto sanções ao Irã não terá consequências para a aspiração do Brasil de pertencer a esse mesmo conselho?

Pode ser que tenha, é imprevisível. Penso que talvez não, pois nossa decisão não foi uma aventura, foi algo pensado. Nós – a Turquia e o Brasil – tivemos êxito em algo que os demais países não conseguiram, que era levar o Irã à mesa de negociações.

O Conselho de Segurança tem como preocupação fundamental sanar situações de crise, nós acreditamos na possibilidade de que o conflito com o Irã se resolva. Para além das sanções – impostas pelo Conselho de modo incorreto e, sobretudo, inútil – não está excluído que a negociação possa se restabelecer. O Irã está demonstrando boa vontade para tal.

Em Cuba, Lula se mostrou leal a um regime símbolo de resistência para os EUA, mas que viola os direitos humanos. Lula chamou de delinquente Orlando Zapata, o dissidente cubano que morreu na prisão.

Não, não o chamou de delinquente, acho que houve aí um comentário lateral que provocou esta interpretação. Existe de maneira geral em toda a América Latina, um movimento de solidariedade com Cuba, especialmente a partir do bloqueio estadunidense, que é um erro muito grave, porque penaliza a população e não produz os resultados que Estados Unidos gostariam de ver, ou seja, uma mudança no regime.

É por isso que usamos Cuba como um símbolo para criticar uma solução semelhante ao caso do Irã. Cuba tem problemas políticos. Todos os países têm, alguns mais, outros menos. Em algum momento eu disse que todos os países têm problemas de direitos humanos, o que foi interpretada por alguns meios de comunicação como se fosse uma posição cínica de nossa parte. Nós não somos cínicos.

Estados Unidos e outros países mantêm uma relação muito fluida com países onde há gravíssimas violações dos direitos humanos. [Eles] têm as suas razões, que são desde interesses de Estado até econômicos. Nós não temos nenhum interesse econômico em Cuba. Estamos ajudando Cuba sobretudo em projetos que possam melhorar a vida dos cubanos, como nos setores agrícola e portuário. Acreditamos que as mudanças em Cuba têm de ser decididas pelos cubanos e há um movimento nesse sentido na sociedade cubana.

Entrevista: Eva Usi (av) - Revisão: Roselaine Wandscheer

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