07 maio 2010

A sociedade rejeita a pedofilia, que é um horror

Marcelo Carneiro da Cunha

Estimado Dom Dadeus. Eu nunca o conheci, o que não me surpreende, dada a frequência com que visito igrejas. Dadeus? Eu li o seu nome, pensei que ele era mais uma confusão de concordância do que um nome propriamente dito, e deixei pra lá. Raramente arcepispos têm alguma coisa para dizer que me pareça minimamente relevante, mas agora, o senhor aparece dizendo em alto e bom arcebispês que a nossa sociedade é pedófila. Pois, em bom português eu digo, wait a minute, monsenhor arcebispo: a nossa sociedade, uma ova!

Pedofilia não é algo que a sociedade sinta, curta, aprecie, pratique ou pense, nem aqui nem, acho, na China. O senhor, por acaso, quis desculpar alguma coisa que, taaaaalvez, padres da sua igreja façam ou tenham feito, distribuindo a mesma culpa sobre toda a sociedade? Erro seu.

Se existem pedófilos nesse mundo, vasto mundo? Seguramente que sim. Isso é normal? Seguramente, não. A sociedade acha aceitável? Olhe o que fazem nas prisões com pedófilos para saber o que aquela parte da sociedade pensa sobre o assunto, seu arcebispo.

A pedofilia existe, e ela é um horror. Ela ocorre porque temos nossas doenças, como espécie, como pessoas, e isso é uma enorme infelicidade. Mas ela é sinônimo de brutalidade, de desrespeito pelo humano, pelo que é certo, que é proteger as crianças, as nossas, e as demais. A pedofilia existe e é doença. Um psicopata gosta de matar pessoas, e isso existe. Um sádico gosta de maltratar pessoas, e isso existe. Existência qualifica algo como real, não necessariamente como normal, monsenhor.

O que tem surgido como realidade é que um número surpreendente de padres católicos têm sido acusados de atos de pedofilia. Nesses tempos, a imagem pública de padres e pastores não têm sido das melhores, e isso precisa ser melhor analisado para ser melhor compreendido. No caso dos padres católicos, talvez seja necessário dar uma olhada no tal de celibato que eles são forçados a manter. Acho que foi o Millôr quem disse que, de todas as taras, a mais esquisita é a abstinência. Abstinência forçada, então, Deus nos livre, seu Dadeus. Distorções produzem distorções, quem sabe?

Mas isso é coisa localizada, estimado bispo, e não é a sociedade quem precisa pagar por esses eventuais erros, mesmo que, na visão da sua igreja, vocês sejam os nossos representantes na Terra. Nem são os nossos representantes, nem nos representam, portanto, quem é pedófilo, cara-pálida?

E, na sequência, outro bispo católico enriqueceu ainda mais o nosso balaio de bobagens católicas, dizendo que "tocar uma criança é uma coisa, tocar um adolescente é outra". Isso dito assim, parece ok. Eu acho mesmo que são duas coisas distintas. Acho que tocar numa criança (e imagino que o bispo aqui esteja falando de toque sexualizado) é uma abominação, e tocar em um adolescente possa estar permeado de outros contextos, uma vez que a adolescência pode se estender até uns vinte e tantos anos de idade. O que eu acho esquisito é falar disso e nessa forma. Como que se preparando a sociedade para lidar com a realidade de que padres talvez toquem adolescentes, e que isso, não seja, por si, tão mal assim. Hummm.

De qualquer maneira, temos uma semana daquelas, onde membros de igrejas e seitas se esmeraram na arte de falar bobagens, ou pior. Um pastor disse que "não é contra gays, mas contra gays casando". Se alguém aí quisesse impedir a você, estimado leitor, de casar com quem você ama, você ia achar que esse alguém não é contra você? Eu, por exemplo, garanto que se alguém tivesse tentado ir contra o meu casamento com a Sra. Carneiro da Cunha, isso teria acabado em luta armada!

Os leitores sabem do meu desapreço por religiões, de maneira democráticamente igualitária. Mas, confesso que eu sinto um certo respeito histórico, ou pelo menos arquitetônico, pela igreja de Roma, especialmente tendo conhecido Roma. Comparando igrejas e seus projetos, ao menos arquitônicos, aquelas belíssimas catedrais reduzem a nada a vulgaridade dos chamados templos evangélicos, com a frieza infinita dos seus vidros azuis.

Mas, em compensação, os homens que representam a igreja o tem feito de maneira infinitamente pior do que a arquitetura que ela foi capaz de produzir. Problema da igreja, se ela quiser viver outros dois mil anos. Mas não tente ela, na sua tentativa de se justificar pelos erros cometidos, colocar a todos nós como portadores do mesmo mal.

Eu, meus amigos, meus vizinhos, minha avó Jovita e uma vasta e majoritária camada da nossa sociedade, não temos nada, mas nada mesmo, a ver com isso.


Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

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