09 março 2009

A MENINA, O BISPO, NÓS




José Ribamar Bessa Freire

08/03/2009 - Diário do Amazonas

Ela é apenas uma criança. De nove anos. Pesa 33 kg e mede 1,36 m. Vive em Alagoinha, a 230 km. de Recife. Lá, foi estuprada pelo padrasto. Ficou grávida de gêmeos. Os médicos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) constataram que a vida dela corria perigo e retiraram os fetos, interrompendo a gravidez na 15ª semana. Após o aborto, na quarta-feira, “ela ficou brincando com a boneca e o ursinho. Não sei se entende o que passou” – disse o diretor da Maternidade, Sérgio Cabral.

Quem, com certeza, não entendeu bulhufas foi o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, 75 anos, recém-aposentado. Ele tentou convencer o pai biológico e a mãe da menina a desistirem do aborto. Fracassou. A Arquidiocese decidiu, então, que vai denunciar os pais da vítima ao Ministério Público, acusando-os de duplo assassinato. Sem chances, porque a legislação brasileira permite o aborto em vítimas de estupro até a 20ª semana de gestação e também no caso de ameaça à vida da mãe. De acordo com avaliação médica, o aborto é, portanto, duplamente legal.

O bispo, no entanto, está se lixando para as leis dos homens: “A lei de Deus está acima de todas as coisas e o aborto é um crime previsto nas leis de Deus”, diz, citando o Código Canônico, que em seu artigo 1.398 pune os que praticam o aborto com a excomunhão. Omite que não foi Deus, mas os homens que escreveram o Código. A proibição é, pois, da Igreja Católica Apostólica e Romana, que é uma criação histórica dos homens. Deus, coitado, não tem nada a ver com essa história, seu nome está sendo invocado em vão.

Não importa. O bispo mostrou que é o herdeiro legítimo da Inquisição e da intolerância, Sem levar em conta a situação real da menina, o bispo confundiu cinto com bunda e cipó com jerimum e excomungou todos os adultos que participaram da operação: os pais da menina, os médicos, o motorista da ambulância, o transportador da maca, as atendentes, os enfermeiros que esterilizaram os instrumentos cirúrgicos, as representantes de ongs em defesa da mulher, enfim todo mundo.

E o padrasto? Foi também excomungado? Necas de pitibiribas! Esse foi o único que escapou. Pressionado pelo Jornal Hoje, da Rede Globo, o bispo afirmou que o pedófilo estuprador, já preso pela lei dos homens, não foi excomungado pela lei divina: “Esse padrasto cometeu um crime enorme – admitiu – mas não está incluído na excomunhão. Ele cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente”.

Acredite se quiser. Mas o bispo disse essa besteira monumental e estarrecedora. Eu ouvi. Milhões de brasileiros são testemunhas. O bispo segue, assim, a máxima malufista do “estupra, mas não mata”. A excomunhão, que é a pena máxima da igreja, condena ao fogo do inferno pessoas misericordiosas, que tiveram compaixão com o sofrimento dos outros, mas poupa o estuprador. Aumenta assim nossa sensação de impunidade. Com esse senso de justiça, parece até que o Código Canônico foi escrito pelo ministro do STF, Gilmar Mendes, para livrar a cara do Daniel Dantas e dos latifundiários.

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