23 março 2008

Os Estados e a arte de navegar

Mauro Santayana

Sem a vela latina, teria sido muito difícil aos marinheiros entrar no Oceano, cruzar o extremo meridional da África, descobrir as rotas para as Índias. Segundo os historiadores da navegação, ela foi inventada pelos egípcios, a fim de subir o Nilo, em tempo anterior aos gregos e romanos. Manobrando as velas triangulares, era possível "torcer" o fluxo do vento e ziguezaguear a embarcação rio acima. Os árabes, ao utilizá-la, puderam aumentar a velocidade dos barcos e avançar nas águas altas do Mediterrâneo, em lugar de marinhar apenas junto a suas costas. Foi assim que o comércio se desenvolveu no mar interior. Os piratas também dela se utilizaram, criando embarcações capazes de fugir rapidamente à perseguição dos navios romanos, equipados apenas de velas retangulares. Foi a combinação dos dois tipos básicos de velas - as retangulares, também chamadas redondas, que davam velocidade com os ventos de popa, e as latinas, permitindo domar os ventos contrários - que deu origem às caravelas portuguesas e espanholas. Sem elas, as naves de Colombo não teriam atravessado o Atlântico, oito anos antes que Cabral as usasse para chegar ao Brasil.

A crise econômica nos Estados Unidos - onde surgiram todas as recessões semelhantes, a partir do fim do século 19 - assemelha-se às dificuldades enfrentadas sucessivamente pelos navegadores do Nilo, do Mediterrâneo e do Atlântico. Mais uma vez os atos de marinhar, que nos deram vocábulos políticos como timoneiros e governo, servem como metáfora ao Estado e suas obrigações. Governar é combinar e aproveitar a velocidade dos ventos favoráveis, com o encabrestar dos contrários, e avançar sempre.

Os americanos venceram a crise de 1929 com o desvio do New Deal, à esquerda. Hoje, as circunstâncias são outras. Os Estados Unidos deixaram de ser a nau capitânia na rota da História. Outros barcos, de tonelagem aproximada, navegam no mesmo rumo. Obsecados pelo pensamento único, os pilotos do neoliberalismo não conseguem identificar os ventos, nem avaliar a sua força. Alguns de seus economistas reclamam a intervenção do Estado, como ocorreu na era do segundo Roosevelt, mas Bush tem a estatura de um pigmeu. Além da reconhecida mediocridade, a obsessão bélica sela seus olhos.

Os países que dispõem de grande mercado interno - como o Brasil, a Índia, a China e a Rússia - são menos vulneráveis às crises mundiais. Sua situação é mais ou menos comum, ao enfrentar as desigualdades sociais, a densidade demográfica, a necessidade urgente de ampliar os sistemas de educação, de assistência à saúde, de criação de tecnologia própria, em busca do necessário e justo bem-estar de seus povos. Cabe a seus governantes manobrar o velame , coordenar as rotas e avançar juntos contra a força contrária.

Podemos, e devemos, criar nova associação geopolítica dessas nações, situadas nos dois hemisférios. É o mais premente e possível diálogo Norte-Sul, porque se trata de países com as mesmas esperanças. A partir desse movimento, ficará mais fácil a integração da América do Sul e da África Meridional.

Trata-se de desafio histórico singular, grandioso e premente. Para que se associem, essas nações não necessitam oferecer umas às outras concessões políticas doutrinárias ou ideológicas. O mais importante é dar a seus povos a tarefa histórica de navegar contra a corrente, como os egípcios empregaram as leis da aerodinâmica em seus barcos fluviais. É a mesma técnica dos jangadeiros do Nordeste, cujas exíguas velas, chamadas de baioneta, são a adaptação das antigas velas latinas do Nilo às suas peculiares necessidades de marinhar.

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