21 março 2008

A Ditadura Reencarnada

por Alipio Freire (*)

O que leva alguém a escrever e publicar, a partir de uma série de mentiras, um artigo com o título Em 2008 remunera-se o terrorista de 1968, nos dias da visita da senhorita Condoleezza Rice ao Brasil, poucos depois da invasão e bombardeio do território equatoriano pelas forças do narco-presidente Álvaro Uribe, para assassinar militantes das Farc?

O que se pretende ao retomar a expressão "terrorista" no título e corpo de um texto, repetida ad nauseam, quando todos sabem dos esforços de Miss Condie para tentar nos convencer de que invasões de fronteiras e desrespeito a soberanias nacionais devem ser considerados "legítima defesa" desde que setrate de perseguir o que o governo a que serve considere unilateralmente como "terroristas"?

Essas perguntas, pelo menos por enquanto, ficarão sem resposta.

Observado o contexto em que a Folha de S. Paulo publicou o artigo do jornalista Élio Gaspari, vamos ao texto.

O pretexto do artigo é a defesa de supostos direitos do senhor Orlando Lovecchio Filho, que perdeu uma perna há cerca de 40 anos, em conseqüência de bomba colocada no Consulado dos EUA em São Paulo.

Primeiro, o senhor Gaspari omite que houve um processo movido pelo senhor Lovecchio contra o arquiteto Sérgio Ferro, único sobrevivente do comando que colocou a bomba. Nesse processo, os advogados do senhor Lovecchio anexaram dois laudos médicos: o primeiro, dá conta de que, quando a vítima deu entrada no hospital imediatamente após ser ferido pela explosão, a cura do ferimento seria possível. No entanto, a Delegacia de Ordem Política e Social (Deops) retirou o senhor Lovecchio do hospital, levando-o para sua sede na Praça General Osório, para interrogatório, somente depois do que foi levado outra vez para o hospital. O segundo laudo (feito depois dessa volta) declara que, nesse intervalo de tempo, sua perna havia gangrenado, tornando a amputação a única saída possível. O arquiteto Sérgio Ferro ganhou o processo em duas instâncias.

Depois, revela ignorância e/ou má fé o cronista, ao classificar a bomba contra o Consulado enquanto ação "terrorista". Os arquitetos Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre (falecido em 1984) foram julgados em 1971 pela Auditoria da 2ª Circuscrição Militar de São Paulo. Acusados pela ação contra o Consulado. Esta foi classificada pelo tribunal militar como "propaganda armada". Ou seja, o jornalista Gaspari investindo-se da mesma presunção do governo do senhor George W. Bush, define unilateralmente o que seja "terrorismo" a partir do que se sente autorizado a atacar o que bem entenda.

Mas, não param aí as mandracarias do jornalista que se propõe expert sobre a ditadura, a respeito da qual já publicou alguns livros que, com esse artigo publicado na Folha, tornam-se, na melhor das hipóteses, fontes absolutamente suspeitas.

De acordo com o cronista, a ação teria sido da autoria da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), planejada por Diógenes Carvalho de Oliveira que, juntamente com os dois arquitetos e a então produtora cultural Dulce Maia, teriam sido seus executores.

Aqui, incorre o arrogante expert em pelo menos três outras inverdades: a ação foi uma decisão da Ação Libertadora Nacional (ALN) e nem Diógenes ou Dulce (militantes da VPR) tiveram qualquer tipo de participação.

A partir desse conjunto de mentiras sucedem-se os ataques pessoais, sobretudo contra Diógenes de Oliveira. A certa altura, lemos: "Durante o tempo em que esteve preso, ele [Diógenes] foi torturado pelos militares (...). Por isso, foi uma vítima da ditadura, com direito a ser indenizado pelo que sofreu. Daí a atribuir suas malfeitorias a uma luta pela democracia iria uma enorme distância. O que ele queria era outra ditadura".

Mais uma vez, investindo-se da postura imperial do senhor W. Bush, o cronista que, segundo consta, foi o enfant gâté (criança mimada) dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, se coloca acima de qualquer lei (sim, pois existe uma Lei de Anistia), e decide dar aulas sobre o que deve ser considerado "malfeitoria" e "democracia".

De repente, além de outros interesses mais ou menos escusos que possa ter para se expor com mentiras tão rudimentares, o cronista volta a uma das suas mais velhas teclas: as indenizações recebidas pelos perseguidos durante a
ditadura.

Desta vez, tenta cunhar uma graciosa expressão: "Bolsa Ditadura".

Desrespeito e indignidade parecem não ter limites.

Sobre as indenizações

A respeito das indenizações, qualquer pessoa minimamente informada sabe que todo Estado é responsável pela integridade de seus cidadãos sob sua custódia e que, não cumprindo esse seu dever, pode e deve ser processado. Do mesmo modo, todos sabem que é dever das Forças Armadas, além de defender o território nacional de agressões estrangeiras, garantir a Constituição que rege o Estado.

Em 1964, setores hegemônicos das Forças Armadas, aliados ao grande capital internacional, à mais alta cúpula da Igreja, à chamada "direita ideológica" e com o apoio do governo dos Estados Unidos (democracia pela qual parece pugnar o cronista que aqui glosamos) rasgou a Constituição brasileira, depôs seu presidente constitucionalmente eleito e implantou a tortura e o assassinato de adversários enquanto política de Governo e de Estado.

Explicado o óbvio, repetirei aqui, para encerrar, apenas um trecho de uma das minhas falas perante a Comissão de Anistia, quando do julgamento do meu processo, em outubro de 2004:

Se o Congresso Nacional houvesse aprovado a nossa proposta de Anistia Ampla, Geral e Irrestrrita, que incluía a apuração das responsabilidades pelos crimes cometidos e punição de seus autores e mandantes nos termos da lei, certamente teríamos como desdobramento o confisco dos bens dos que enriqueceram ilicitamente naquele período à custas da violência e do herário público. Em todos os sentidos, e também por saber que nossas indenizações seriam pagas por esses confiscos justos e legítimos, nos sentiríamos certamente muito mais realizados em nossos objetivos.

No entanto, foram exatamente os que pensam como o senhor Gaspari, que preferiram que esse tipo de solução não se concretizasse.

Nota: As informações aqui utilizadas foram dadas diretamente com Sérgio Ferro e Dulce Maia. Infelizmente, não pudemos ouvir Diógenes Carvalho de Oliveira. Os três, bem como o já falecido Rodrigo Lefèvre, foram meus companheiros de prisão, e tenho profundo orgulho de privar da amizade de todos eles.

(*) Alipio Freire é jornalista, escritor e membro do Conselho Editorial do Brasil de Fato, onde este artigo foi originalmente publicado.

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